Quella Civetta



Doris Day

Quella Civetta

Fui criado por italianas, desde cedo. Vivo com elas desde sempre.
Cada uma delas, nonna, mamma, donna, sempre foram mandonas.
Aí de você se desse uma bola fora. Com o time ganhando já tira cara feia, imagina quando dava errado: aquele chinelo amigo sempre vinha pra uma carícia.

Com elas convivi muitos bons momentos.
Mas, depois de um tempo de vida, principalmente depois que eu comecei a fazer a barba e até já tinha a chave de casa, resolvi dar uns contras nelas - besta eu, mas a gente só aprende depois de velho.
Então um domingo daqueles chuvosos eu resolvi ser macho e peitar: não vou no almoço da nonna.
Fiquei sem sobremesa por dois meses e ouvindo quase tudo aquilo.

Naquele tempo a gente tinha a obrigação de ir almoçar no domingo na casa da nonna, Aí de quem faltasse.
Se fosse filho/a ficava sem sobremesa um mês.
Se fosse genro elas diziam esse carcamano estragou a vida dela.
Se fosse nora elas diziam essa civetta estragou a vida dele.

Então um dia eu fui almoçar lá sem a Ninna, minha namorada.
Naquela semana a gente tinha brigado porque, porque, pra ser sincero, eu nem lembro - mas como ela também era italiana e de Napoli ... acho que você me entende, né?

A Ninna era loirinha de cabelo curto bem no estilo da Doris Day. Sempre estava com aquele conjuntinho bouclé  e aquele colarzinho que imitava pérolas.  Ela era “mais ruim” do que Emulsão Scott em jejum - nada era do jeito que ela gostava. Eu sempre estava errado.
Mas a Ninna era meio que a queridinha da minha nonna. Sempre tinha uma torta que ela gostava.

Agora você vai entender por que tanto volteio nesse texto.

Quando eu entrei na casa da nonna sem a Ninna ...
- Bambino, dov'è ninna?
Aí eu expliquei que a gente tinha brigado e que eu tava dando um tempo.
- Mà quella non le piaci più?
- Não nonna, não é nada disso. Nós apenas discordamos de umas coisas e a gente achou melhor ficamos um pouco sozinhos.
- Peccato, oggi ho preparato una torta di mele per lei.
- Eu sei que ela gosta muito dessa torta de maça, mas ela não veio.

Do nada, deu um click na mesa e as mulheres todas, a começar pela mamma, passaram a se referir assim quando falavam da Ninna:

- Questa civetta ha rovinato la sua vita
- i suoi capelli sono tinti
- È una bionda finta
- Civettona, abbandonato il mio pincipe

E por aí foi a tarde toda. Teve até lágrimas.
Até eu fiquei comovido.

Mas, do nada, apareceu na varanda da casa, quem? Ela Mesmo, a Ninna.
Imediatamente a minha nonna saiu da mesa e foi encontrar com ela lá na porta.

- Bellina, ti seminiamo così tanto (sic)
- Anche tu mi piaci davvero 
- Ho preparato quella torta di mele solo per te

Aí, a Ninna, com aqueles olhos azuis lindos, virou pra mim e disse:
- Marcinho, você não quer um pedaço? É muito pra mim.

Sem pestanejar, minha mamma decretou:
- Non lo fa, è già troppo grasso

E eu sobrei no canto com um café sem açúcar enquanto elas falavam e falavam e riam e falavam.

Então, se você não entendeu nada, nem eu.
Até muito pouco tempo atrás elas todas ainda eram amigas.
Atualmente muitas delas já estão vivendo nos Jardins do Céu.

Lá deve ter torta di mele, vino  e chiacchiere ogni giorno.




Marcio Martini
28/06/2020
#ProsaGostosa
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